07 agosto, 2012

O menino confuso

Deitado em minha cama, pude ver pela luz invadindo o quarto que o sol começava a ganhar força nos céus, assim como minha bexiga ganhava força na disputa entre a preguiça e o início do dia. Foi quando ouvi sons de panelas vindo da cozinha que realmente me animei para sair de baixo dos lençóis, com um pouco de sorte meus pais estariam preparando mingau e aquela manhã seria ótima.
Minha mãe tinha a habilidade de tornar o início do dia sempre muito prazeroso. Ela não trabalhava fora e quando meu pai saia para o trabalho, eu sempre podia fazer o que bem entendesse, fosse jogar videogames ou simplesmente ficar na cama. Então, aos quatorze anos, eu gostava muito da minha mãe, o que, verdade seja dita, é raro nessa idade.
Mas então uma estranha passou pela porta gritando ordens para uma empregada que eu sequer sabia que existia. Parecia apressada e estava vestida com roupas elegantes e desconfortáveis dessas que um bom emprego exige. Passou pelo quarto e olhou-me com uma expressão cheia de ternura.
- Bom dia queridinho! Dormiu bons sonhos?
Não estava entendendo nada daquilo. Me deu um beijo na testa e falou como minha mãe falava, mas não era sequer parecida com ela. Ao invés de cabelos negros e longos e uma aparência jovial, essa tinha um rosto cansado e envolto por fios loiros. Estava tão confuso que acabei não reagindo.

Ela bagunçou meu cabelo, saiu do quarto e tornou a gritar ordens aleatórias pela casa. Levantei-me por fim e fui ao banheiro, independente de quem fosse aquela mulher, iria ter que descobrir depois de eu ir ao banheiro. Abri a porta correndo já quase sem conseguir me conter e a bati com força em alguém que estava na pia.
- Ai, seu idiota! Bate na porta antes.
A porta se fechou com força na minha cara e a risada de pelo menos duas pessoas fez eco no banheiro.
- Quem está ai? - Perguntei já incomodado com a presença de estranhos na minha casa.
- Você é tão idiota. - Falou a mesma voz por detrás da porta. - Quem está ai. - Imitou com uma voz zombeteira em um tom parecido com a voz que um ogro deveria ter.
Tornei a tentar a abrir a porta com força. Queria ver quem estava ali dentro, a voz me era familiar, mas não a pessoa. Bati a porta em seu braço novamente e pude vê-lo melhor. Era alto e forte, tinha o cabelo encaracolado negro e oleoso e me olhava por olhos pequenos, vesgos e cheios de olheira que faziam-no parecer com uma mistura de monstro e homem.
- Porra! para com isso, se quiser usar o banheiro vai ter que esperar. - E tentou forçar a porta para fechar. - Sai da porta, cara, se tiver que usar o banheiro logo, vai no outro antes da sua irmã.
Nesse momento acabei entrando em choque mais uma vez. Como assim irmã? Me perguntava. Mas antes que pudesse chegar a qualquer conclusão uma outra pessoa apareceu pela abertura da porta. Estava atrás do homem-ogro, mas era como se fosse uma versão menor do mesmo sem o cabelo encaracolado. Atirou uma lata de desodorante que me acertou a testa. O ogro maior desatou em uma gargalhada. Peguei a lata e a atirei de volta com toda a força, alguma coisa quebrou lá dentro. Enfurecido e confuso tentei forçar a abertura da porta e, apesar de ser um menino, consegui vencer a disputa contra alguém que tinha o corpo musculoso de um jovem em seus dezoito anos. O outro então o ajudou a fechar a porta e eles a trancaram por dentro.
A senhora, que pelo andar daquele pesadelo deveria ser minha mãe, passou pela porta e mandou que abrissem. Por uma fresta ralhou em sussurro com o que deveriam ser seus filhos.
- Parem com essa idiotice, ele está tendo um dia difícil. Apenas tenham paciência.
Percebendo que ela tinha entendido minha confusão me aproximei para tentar descobrir o que infernos estava acontecendo, mas fui interrompido. Uma jovem em seus quinze anos, longos cabelos negros encaracolados e os mesmos olhos contraídos e bizarros, abriu a porta do quarto na outra ponta do corredor. Vestia um pijama curto e tinha a face ainda dominada pelo sono.
- Toda manhã é isso, vocês não tem respeito nenhum pelo sono dos outros. - Reclamou sem irritação verdadeira na voz e entrou em outro banheiro que estava vazio e eu sequer tinha percebido.
Me aproximei ainda um pouco confuso e falei o mais baixo que pude.
- A senhora… pode me explicar o que está acontecendo aqui?
- Estou com um pouco de pressa, meu filho, espere sua irmã sair do banheiro que vocês dois podem me acompanhar até o carro, está bom assim?
- E pra que precisamos esperar ela?
- Pra ela voltar com você, amor. Pra você não se perder, só por isso.
O que ela falava não fazia o menor sentido. Conhecia o meu prédio há muito tempo e já tinha quatorze anos, mesmo que não conhecesse o lugar onde morava, saberia voltar pelo caminho de onde vim. No entanto, ela tinha tanta ternura quando falava comigo, que achei melhor não a contrariar.
***
Quando sai, percebi que não reconhecia mais o caminho até o carro. Enquanto conversávamos pegamos 2 elevadores e andamos por extensos corredores. Tudo era tão confuso que havia desistido de prestar atenção no caminho. Já que a menina de cabelos encaracolados estava ali apenas para me mostrar o caminho de volta, resolvi me concentrar no que a minha suposta mãe dizia.
- Pode começar a fazer suas perguntas agora, filho. - Iniciou ela, que apesar de ter dito que estava com pressa, andava calmamente.
Estava um pouco receoso que a pergunta principal pudesse lhe ofender, mas não havia escapatória.
- Eu não sei quem vocês são. E quero saber onde estão meus pais.
- Eu já esperava por isso. - Respondeu tentando camuflar um pouco de dor. - Vai ficar tudo mais fácil se você simplesmente acreditar no que eu te digo, ok? Eu sou sua mãe. Você apenas não está se lembrando disso.
- E por que eu não me lembraria da minha própria mãe.
- Por que você tem um pequeno problema. As vezes você tem dificuldade em lembrar das coisas. Hoje parece estar sendo um dia bem ruim para você. Continue perguntando, isso costuma de ajudar.
- Eu tenho amnésia?
- Algo parecido com isso.
- Aqueles garotos que estavam no banheiro. - Falei olhando de soslaio para a menina, cogitando se a incluiria nesse grupo ou não. - Eles não parecem em nada comigo, eles são meus irmãos?
- Sim e não. Eles são seus meio irmãos, todos em nossa casa são meus filhos biológicos, inclusive você.
Como eu podia não me lembrar disso. Ao invés de tudo ficar mais claro, eu apenas estava ficando verdadeiramente triste. Algo que ela deve ter percebido.
- Desculpe estar sendo tão sincera, mas costuma ser a única coisa que acalma você quando está nesses dias querido. - Disse alisando minha cabeça.
Nesse momento tínhamos entrado no elevador com outras pessoas e, mesmo percebendo o nervosismo da minha meia irmã, não pude deixar de continuar.
- Se o que você fala é verdade, aonde está meu pai? - Perguntei, como quem tem um trunfo na manga.
- Seu pai biológico nos abandonou pouco antes de você nascer. - A resposta veio rápida e firme, e, a julgar pelo olhar espantado das pessoas no elevador, cruel.
- Isso não é verdade! - protestei. - Eu lembro do meu pai e da minha mãe!
- Querido, aceite o que eu te digo como verdade e quando não tiver mais perguntas tome seu tempo para refletir, é assim que você costuma se acalmar.
Estava começando a ficar sem ar. Aquilo simplesmente não estava certo. Tinha lembranças reais da minha família. Não conseguia sequer pensar em outras perguntas. O elevador parou e todos saíram, menos nós três. Minha mãe se aproximou e sussurrou.
- Independente da conclusão que você chegar hoje, saiba que eu te amo muito. - Deu-me um beijo na testa e um forte abraço. - Leve seu irmão pra casa. - Disse a minha irmã.
Quando a porta do elevador se fechou, dei-lhe as costas e acabei encontrando um espelho. Nele enxerguei uma menina linda com os mais belos olhos que já havia visto e ao seu lado um homem por volta de seus 30 anos, vestindo pijamas e uma expressão bizarramente vaga que demonstrava algum tipo de deficiência mental. Quando percebi que somente eu e minha irmã estávamos no elevador, deixei cair as primeiras lágrimas.
- Ei, ei. - Disse docemente ela. - Quer que as pessoas lhe vejam chorando?
- Não me importo.
O silêncio acompanhou minhas lágrimas por mais alguns andares.
- Sabe, as vezes tento conversar com você e você não responde. Como se estivesse simplesmente vivendo em outro mundo… - Ela tomava coragem para falar. - Eu posso estar errada, mas tenho a impressão que você é mais feliz quando está assim.
Pensei em todo o sofrimento que causava em minha mãe e como esses dias deviam piorar tudo. Com os olhos fechados senti uma última lágrima escorregando e acordei em outro lugar. Um mundo menos confuso. 

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